Forró
Ouça nossa trilha sonora de festas juninas
O forró pode ser declarado como patrimônio imaterial do Brasil até meados de 2020. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) iniciou pesquisa nos nove estados do Nordeste, mais o Distrito Federal, Rio de Janeiro e São Paulo para identificar a forma de expressão que além de gêneros musicais diz respeito a festas e interações sociais ao som da sanfona, zabumba e do triângulo.
A iniciativa foi bem acolhida entre os músicos como o maestro Marcos Farias, filho da cantora Marinês (1935-2007) e afilhado de Luiz Gonzaga (1912-1989), o Rei do Baião. Segundo ele, muitos grupos e artistas que se denominam “de forró” fazem adaptações de cumbia e zouk (de países hispânicos sul-americanos e caribenhos).
“Tiraram o nosso nome. A gente foi usurpado do título e jogado para essas músicas de características latinas”, reclama. Conforme Farias, o que ocorre é “apropriação indevida”, e esses grupos fazem “oxente music”, brinca.
Ouça entrevista com o maestro Marcos Farias
De acordo com Hermano Queiroz, diretor do Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan, o trabalho de registro do forró permitirá “mapear as vulnerabilidades, os riscos, a necessidade de promoção do bem”. Ele, no entanto, assinala que “o objetivo do registro não é dar autenticidade a uma narrativa”, e ressalta que há várias narrativas em circulação: “o patrimônio cultural é dinâmico”, explica.
Segundo Hermano Queiroz, não é preocupação central saber exatamente em que lugar teria surgido o forró. “A raiz não é o grande problema. O que o registro traz é o potencial de diálogo intercultural entre diversas manifestações”, crê. Ele assinala que a pesquisa do Iphan vai “mapear todos olhares e narrativas sobre esse bem imaterial’ e permitir que músicos de diferentes lugares se conheçam e passem a “ter a compreensão de que embora espraiados em todo o território cultural são irmãos”.
Desde a origem do nome, há mais de uma narrativa sobre a palavra forró. Conforme o maestro Marcos Farias, o compositor e instrumentista Sivuca (1930-2006) defendia a tese de que a palavra tem como origem a expressão em inglês de “for all”.
O termo teria sido forjado ainda no século 19 por causa da presença de trabalhadores ingleses na instalação de ferrovias e de fábricas de tecelagem no Nordeste. “Se produzia mais algodão em Campina Grande que em Liverpool”, costumava explicar Sivuca, segundo o maestro.
A versão da origem anglófila da palavra forró foi atualizada no século 20. Há quem diga que o termo teria surgido na 2ª Guerra Mundial em Natal. A capital do Rio Grande do Norte recebeu 10 mil soldados norte-americanos à época do conflito. Essa versão é ilustrada no filme For All - O Trampolim da Vitória (1997), de Buza Ferraz e Luiz Carlos Lacerda.
O etnomusicólogo Carlos Sandroni, professor do Departamento de Música da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e responsável pela pesquisa do Iphan, descarta essa versão. Segundo ele, desde o século 19 há uso da palavra forró “para designar uma festa popular com dança, com música e com bebida”.
O especialista também lembra que “edição de dicionário de 1912 tem a palavra forrobodó. Na edição do ano seguinte, já tem forrobodó e forró. Ao que tudo indica forró é uma abreviação de forrobodó”. Conforme o filólogo Evanildo Bechara, forrobodó é originado da palavra galega forbodó.
Além da filologia, geografia e história da música descartariam a formação da palavra forró a partir da expressão inglesa for all. Sandroni tem como hipótese que o forró nasce longe do litoral de Natal. As matrizes originais estariam no interior do Nordeste, em uma área hoje tida como o sertão de Pernambuco, Paraíba e Ceará.
Sandroni também defende que “o forró se tornou uma expressão do povo do Nordeste, de uma maneira de se identificar como nordestino, que se afirma por suas características, por seu valor, por sua identidade”.
“Aos poucos a palavra forró vai se deslocando para designar não só um gênero [de música e festividade] especificamente, mas um guarda-chuva para vários gêneros como o xote, o xaxado, o arrasta-pé, a quadrilha, e o próprio forró”, descreve.
No “balaio de gêneros do forró”, apontado por Sandroni, tem destaque o baião criado por Luiz Gonzaga. O especialista lembra do papel fundamental Gonzagão a partir dos anos 1940 no rádio para a afirmação da cultura nordestina “O baião é uma empreitada consciente do Luiz Gonzaga com os seus parceiros, Humberto Teixeira [1915-197], José Dantas [1921-1962] e outros nessa etapa inicial”.
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O maestro Marcos Farias concorda com o etnomusicólogo quanto à centralidade de Gonzagão. “Ele veio trazendo as nossas músicas, o baião, o forró que não existiam. Foi ele que denominou. Ele adaptou e nacionalizou o que hoje é nosso de verdade. Foi a grande voz a alma do povo nordestino. Ele trouxe as nossas alegrias, as nossas frustrações. Trouxe as nossas comidas, trejeitos, trouxe o nosso jeito alegre de levar a vida e fazer as coisas acontecerem”.
Farias conta que até a disposição dos músicos nos palcos de forró é ideia de Gonzagão. “Os baixos da sanfona são graves, então os agudos do triângulo têm que ficar do lado. Ao lado da mão direita, que faz o solo e que é agudo, tem que ficar a zabumba que é grave e, assim, contrabalancear. Ele era minucioso com isso”, detalha.
Conforme Sandroni, os três instrumentos têm origem europeia. “Isso quer dizer que é uma música europeia? Claro que não. A música é muito mais que os instrumentos, é o que se faz com os instrumentos”, pondera.
Segundo ele, “Sanfona é um instrumento evidentemente europeu”. O mesmo pode dizer da zabumba ainda que o senso comum identifique como um tambor africano. “O tipo de construção e de amarração você encontra inclusive na península ibérica”, assinala. O mesmo ocorre com o triângulo, “conhecido como ferrinho em Portugal”.
Antes do Forró, outras formas de expressão musical obtiveram o reconhecimento do Iphan como patrimônio imaterial e constam no Livro do Registro das Formas de Expressão como o caboclinho, a capoeira, o carimbo, o cavalo marinho, o frevo, o jongo, o marabaixo, o maracatu, o samba de partido alto, o samba de terreiro, o samba enredo, o samba de roda, o tambor de crioula e os toques dos sinos de igrejas em centros históricos de Minas Gerais.
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A capital do Brasil será a capital dos festejos de São João fora de época. Nos dias 2, 3 e 4 de agosto, Brasília vai sediar o Campeonato Brasileiro de Quadrilhas Juninas, também conhecido como Brasileirão de Quadrilhas. Vinte e dois estados, além do Distrito Federal, participarão da 7ª edição do torneio que ocorrerá em Samambaia, uma das regiões administrativas mais populosas do DF.
A expectativa é que até 10 mil pessoas assistam ao campeonato. “Brasília é uma referência forte em festa junina. Tem um estilo bem próprio de dançar. É bem caipira, é bem interessante”, atesta Michael Helry da Silva, presidente da Confederação Nacional de Quadrilhas Juninas e Grupos Folclóricos, Conaqj. Segundo ele, a cidade construída por candangos vindos especialmente do Nordeste “herdou o amor pelos festejos juninos”.
Até hoje, 59 anos após a inauguração, metade dos imigrantes (49,88%) de Brasília é oriundo de um dos estados do Nordeste, especialmente da Bahia (143 mil pessoas), do Piauí (137 mil) e do Maranhão (136 mil), conforme os dados da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (2018), da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan).
Os dados populacionais não computam, porém, os filhos dos imigrantes que hoje passam a animar as quadrilhas juninas da capital, gente como o professor de educação física Patrese Ricardo da Silva Mendes, filho de cearense, que coordena as quadrilhas Formiga da Roça e Coisas da Roça, ambas da região administrativa de São Sebastião, a 24 quilômetros (km) do Plano Piloto.
Patrese, hoje com 34 anos, dança quadrilha desde a adolescência. O interesse começou ao perceber que os festejos juninos eram uma das poucas atrações para rapazes e moças quando era jovem em São Sebastião. “Eu achava bacana, e além disso faltava lazer pra gente”.
Formiga da Roça e Coisas da Roça são duas das oito quadrilhas juninas do módulo especial que disputam até 21 de julho o Festival Gonzagão de quadrilhas juninas, que vai escolher os dois grupos da cidade que participarão do Brasileirão de Quadrilhas.
A produção das quadrilhas no DF mobiliza 5 mil brincantes anualmente em cerca de 50 quadrilhas e criam ocupação e renda para cerca de 80 mil pessoas que se dedicam por quase um ano, como acontece com as escolas de samba no Rio de Janeiro, com a organização das apresentações juninas.
Esse é o caso, por exemplo, do professor de dança e coreógrafo Leandro Mota, que desde o final de cada ano escolhe e estuda um tema para as apresentações da Formiga da Roça do ano seguinte.
“Adaptamos histórias para o movimento junino. Estamos crescendo e trazendo temáticas diferentes, não apenas de São João, e encaixando na linguagem de quadrilha junina”, conta Mota ao assinalar a necessidade de planejar antecipadamente as apresentações.
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Os ensaios juninos em São Sebastião começam em janeiro, após o recrutamento de jovens nas escolas públicas de toda a cidade. Neste ano, a quadrilha traz 120 brincantes de oito regiões administrativas e até de uma cidade do Entorno goiano (Luziânia). As apresentações em 2019 começaram na segunda quinzena de maio e vão até agosto. Só neste mês de junho, a quadrilha fará um total de 34 apresentações.
Roupa para dançar quadrilha
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Um passeio entre as barracas de comida dos "arraiás" juninos pode render algumas calorias e, aos glutões caipiras mais curiosos, algum conhecimento sobre a formação cultural brasileira e a nossa culinária.
Quem explica é a professora de gastronomia Luiza Buscariolli, que leciona no Senac-DF e no UniCeub e ensinou aos leitores da Agência Brasil dois pratos típicos do São João. Segundo ela, os quitutes guardam a história dos portugueses e dos povos ameríndios que habitavam o país antes dos nossos colonizadores.
“A gente sabe que havia algumas festas neste mês de junho que os indígenas faziam. Quando os jesuítas estiveram no Brasil [a partir de 1549], aproveitaram dessas festas para trazer a tradição [europeia] de festas juninas, que por sua vez eram uma apropriação das antigas festas pagãs por causa do solstício de verão, que no hemisfério sul é solstício de inverno”, revela.
Enquanto prepara uma porção do prato Maria Isabel, comida típica da região hoje conhecida como o Estado do Piauí, que mistura arroz com carne-de-sol, Buscariolli lembra que a iguaria guarda relação com o ciclo de gado iniciado pelos portugueses no Brasil (século 16). A atividade pecuária foi introduzida por Tomé de Souza, primeiro governador-geral (1549 a 1553) ainda no tempo das capitanias hereditárias, para transporte e alimentação.
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O prato Maria Isabel, assim como a paçoca de carne de sol também do Nordeste; o arroz carreteiro (com charque ou carne seca) do Sul e o feijão tropeiro (com torresmo e linguiça) dos sertões de São Paulo, Minas Gerais e Goiás (esse no século 17), são comidas que podiam ser armazenadas e transportadas em longas viagens.
“A lógica é tudo seco, porque se conseguia colocar em uma bolsa [de couro]”. Na hora da fome, a carne era picada e misturada. “Podiam usar água para fazer reidratação”, assinala a professora de gastronomia.
Além da proteína animal, outros ingredientes desses pratos compõem nossa história. O arroz, do Maria Isabel, foi trazido da Ásia pelos colonizadores portugueses. A farinha de mandioca tem origem indígena, e o feijão, ingerido pelo homem desde a antiguidade, tem espécies autóctones no Brasil e outros países americanos.
Assim como a mandioca, usada na produção da farinha e do beiju, os indígenas trouxeram ao cardápio junino os pratos a base de milho. Iguarias provadas durante as festas, como a espiga cozida, curau, pamonha e canjica foram ensinados aos colonizadores pelos indígenas.
“Para os portugueses, milho era comida de animal. Foi muito difícil aceitarem. Passaram a comer porque não tinha outra coisa”, explica Luiza Buscariolli ao preparar um bolo de milho com goiabada para a Agência Brasil.
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A conformação desses pratos teve início antes do ciclo do açúcar (começado ainda no século 16), que ajudou a adoçar muitas iguarias juninas, e bem antes do ciclo da mineração (século 18) que se notabilizam pelo intenso uso de mão de obra escrava violentamente traficada da África.
Luiza Buscariolli sublinha que na condição de escravo, eram restritas a autonomia dessas pessoas até para se alimentar. “A possibilidade de escolher o que cozinhar e com que alimento vem depois [do fim] da escravidão. Ela nota, no entanto, que os negros mesmo antes do fim da escravidão irão se ocupar de preparar e vender alimentos nas ruas em tabuleiros, como aqueles que ainda hoje vendem cocadas em áreas do litoral brasileiro - “uma conserva de coco”, como sabiam fazer os portugueses sob influência francesa.