90 anos da aviação comercial brasileira
Elas, de vestidos. Eles, de paletó e gravata. Era uma verdadeira festa à luz do dia. Com direito a anúncios em praça pública, notícia no jornal e foto entre desconhecidos. Desfrutariam juntos de um momento incomum, uma experiência que os colocaria em uma mesma página, mas inesquecível. Não faltavam os chapéus, como uma regra de vestimenta para todos que marcariam presença ao evento. As abas protegiam o olhar que era ofuscado pelo sol à beira do rio. Os sapatos ficavam cobertos de areia, mas era por um “bom motivo”. Aliás, a roupa da festa ficaria suada naquele calor. Quem conhece o verão gaúcho de mais de 35 graus Celsius sabe bem o quanto esquenta. Tudo valeria à pena. Era 1927. Lá vinha o pássaro de aço. Nas mãos, o ingresso que tinha custado o equivalente a cerca de US$ 40 da época, por um trajeto de 270 quilômetros, a 150 quilômetros por hora a 50 metros de altura. Oito assentos para o espetáculo. Viajariam de avião. E passariam a ser personagens da história da aviação comercial no Brasil que completou, em 2017, 90 anos.
Uma história que começou no avião Atlantico (escrito assim mesmo, sem circunflexo, por empresários alemães para designar o "aerobote" Dornier Wal D-112), da empresa Condor Syndikat.
O avião comercial, mesmo atendendo principalmente à elite em grande parte dessas nove décadas, ajudou a integrar regiões e diminuir isolamentos. Para refazer os caminhos desse longo voo, a reportagem da Agência Brasil ouviu pesquisadores e buscou as referências históricas.
Empresa 01
Segundo o pesquisador Paulo Laux, autor do livro 90 anos da aviação comercial no Brasil, publicado no início deste ano, as atividades regulares da aviação comercial começaram em 1927 por meio de um grupo de empresas alemãs, o Condor Syndikat (Sindicato Condor), que “vendia” atividade e aviões aos interessados.
O grupo queria entrar para valer no mercado da América Latina. Para convencer o governo brasileiro da viabilidade e segurança do equipamento e do voo, no dia 1º de janeiro daquele ano foi realizado um voo com o ministro da Viação e Obras Públicas, Victor Konder, para Santa Catarina, estado onde ele nasceu.
Laux define esse voo como de "boa vizinhança" para tentar abrir as portas ou as pistas para a empresa no Brasil. O avião foi pilotado pelo comandante Rudolf Cramer Clausbruch, auxiliado pelo piloto mecânico Franz Nulle. No voo, a tripulação fez questão de fazer um rasante sobre a residência da família de Konder e jogar um ramalhete de flores.
A estratégia de “sensibilização” deu certo. Tanto que, na volta ao Rio de Janeiro, o ministro autorizou o transporte regular desde que a empresa fosse nacionalizada em um ano.
No dia 3 de fevereiro, finalmente, ocorreu a primeira viagem comercial da companhia com a mesma tripulação do voo com o ministro, com o acréscimo do tripulante Max Sauer (piloto e diretor técnico da companhia).
Era inaugurado o trajeto de Porto Alegre para Pelotas e Rio Grande, em pleno calor gaúcho. No pouso nessas cidades, o aeroporto era uma casinhola para abrigar os funcionários da administração, que faziam os improvisados check-ins. A viagem, até para efeito de evitar que o piloto errasse o caminho, era feita sobre a Lagoa dos Patos (por isso, chamada de Linha da Lagoa). O embarque era na prainha à beira do Guaíba. "A aeronave podia transportar oito passageiros sem muito conforto [...] em desconfortáveis cadeiras de vime, os passageiros enfrentavam o ruído ensurdecedor dos dois motores Hispano Suiza montados sobre a asa e que impossibilitavam qualquer conversa", explicaram os pesquisadores Carlos Lorch e Jackson Flores no livro Aviação brasileira.
"Tinha que colocar algodão no ouvido para a viagem", afirma o pesquisador Antônio Guerra, de 85 anos:
Bilhete 01
O bilhete aéreo número 1 foi emitido para o industrial gaúcho Guilherme Gastal. Há registros também da presença de outros dois passageiros: João Oliveira Goulart e Maria Echenique, de acordo com o pesquisador Paulo Laux.
O jornalista conta que o primeiro voo comercial não teve as melhores condições climáticas para um "voo de cruzeiro". Mas todos estavam ansiosos pela experiência.
Segundo os livros sobre o assunto, era barrado quem levasse acima de 75 quilos. Sem choro nem reza. Nem pagando mais pelo excesso de bagagem, como ocorre hoje.
Às vezes, diz Laux, passageiros eram convidados a saírem do avião. "Mesmo considerado moderno, o hidroavião Dornier Wal era lento, com velocidade que variava bastante conforme a direção do vento, ficando em torno de 150 quilômetros por hora”.
A ventilação interna fazia-se com as janelas abertas durante o voo. Na decolagem, eram mantidas fechadas para evitar a entrada de água, conforme a obra História geral da Aeronáutica brasileira, assinada pelo Instituto Histórico da instituição.
Ventava muito e as águas no Rio Guaíba estavam bem agitadas. O pouso, que seria uma aventura, teve que ser realizado apenas em Rio Grande. Para a decolagem, o agitar do rio era importante para dar o empurrãozinho para cima. "As pessoas eram corajosas", diz Antônio Guerra:
Guilherme Gastal, conforme registra Paulo Laux, descreveu detalhes de como foi a compra da passagem na ocasião:
"Comprei o bilhete número 1 da firma Bloomberg & Cia. A passagem aérea não era impressa. Vinha datilografada, com o carimbo da casa [...] com os seguintes dizeres: 'Viagem nº 1. Passagem nº 1. Porto Alegre - Rio Grande. Saída às 8h. Estar no alpendre do cais às 7h30".
E todos estariam lá diante do piloto alemão Clausbruch, que tinha um contrato de 10 contos de réis por mês, o "equivalente ao valor aproximado de três carros Ford do ano", aponta Laux. "Era um profissional muito valorizado que poderia pedir quanto quisesse".
Piloto 01
O primeiro piloto da aviação comercial, como era alemão, foi preso no Rio de Janeiro e ficou detido por três anos. "No entanto, pelo que vi, nunca guardou qualquer mágoa da situação", afirma Antonio Guerra.
Tudo deu certo para o piloto. Fez carreira no Brasil e nunca foi embora, nem mesmo depois de deixar a prisão. Nem mesmo depois de ser impedido de retomar a atividade aérea. Guerra, pernambucano que fez carreira na Aeronáutica e radicado em Brasília, é reconhecido como um dos principais escavadores da história da aviação no Brasil.
"Lembro que, no cinquentenário do primeiro voo, eu era diretor do Aeroclube de Brasília, que fica em Luziânia (GO), para convidar o primeiro piloto da história da aviação comercial para uma homenagem. Ele aceitou, veio a Brasília e nunca esqueceu daquele voo de 1927. Amava o Brasil apesar do momento conturbado que havia vivido", afirma Antonio Guerra.
No caso, o primeiro piloto da aviação comercial foi ganhar a vida como taxista, aposentou-se depois com um salário mínimo e morreu aos 79 anos de idade.
Conforme explicam os pesquisadores, o Sindicato Condor rebatizado como Cruzeiro do Sul trouxe know-how para infraestrutura necessária, aeronaves, pilotos, mecânicos. "Tudo, enfim, que garantisse a viabilidade de um novo projeto. O governo federal participava do processo com os entraves usuais da burocracia e os carimbos que garantiriam a autenticidade da documentação", afirma Paulo Laux.
Era um tempo em que ainda não existiam campos de pouso terrestres. Antonio Guerra identifica que a maior preocupação na época era convencer os passageiros de que era seguro.
Além das fronteiras
Uma das raízes empresariais da aviação foi a do francês Pierre Latécoère, que produziu em Paris 50 tipos de aviões (militares, comerciais e hidroaviões).
A América do Sul era terreno para desbravadores. Em 1924, técnicos franceses vieram estudar a possibilidade de implantar a linha entre Recife (PE) e Buenos Aires (na Argentina).
A autorização só veio em março de 1927, o que tirou o pioneirismo da empresa. Os franceses haviam perdido a guerra para os alemães. No livro Breve história da aviação comercial brasileira, de Aldo Pereira, os voos entre Nordeste brasileiro e a Argentina tinham finalidade postal.
O dia 14 de novembro marca o início da atividade regular entre Natal (RN) e Buenos Aires. "No dia 13 de novembro de 1927, foi criada a Companhia Aeronáutica Brasileira destinada a preparar e administrar a infraestrutura aeroportuária necessária às operações da Aéropostale, a primeira a construir campos de pouso no litoral brasileiro desde Natal até Pelotas", disse o autor, piloto e historiador já falecido.
O ano de 1927 teve a inauguração da Varig (uma das principais empresas da história do Brasil, que faliu em 2006). Os historiadores registram que a criação da empresa, também pelas mãos e obsessão de um alemão, Otto Meyer, é um dos grandes marcos do início da aviação no Brasil.
Meyer conseguiu subsídio com empresários gaúchos depois de investidas fracassadas em outros estados. A primeira reunião foi em 1º de abril. A empresa fundada em maio e autorizada a operar em junho. "Com o Atlantico, a Varig passou a explorar em seu nome a Linha da Lagoa", registrou Aldo Pereira.
"Meyer era um obstinado", afirma Paulo Laux. "A história da aviação no Brasil tem como capítulo fundamental a criação da empresa", diz Antonio Guerra.
“Em cumprimento aos acordos acertados entre a Condor e a Varig, no dia 15 de junho de 1927, tanto a Linha da Lagoa como o Atlantico foram transferidos para a Varig”, registrou Carlos Lorch no livro A estrela brilhante, que conta a história da empresa.
O avião passaria a ter a matrícula P-BAAA, a primeira aeronave mercante da história do Brasil. Varig e Sindicato Condor passariam a operar juntos. No final de 1927, a Varig já teria a segunda aeronave, o Dornier P-BAAB.
O serviço cresceu muito e um brasileiro apaixonado por aviação foi candidato à vaga de secretário do alemão. "Não deu nenhuma importância para o ordenado que eu podia oferecer", disse Meyer. O brasileiro era Ruben Berta, que seria o segundo presidente da história da empresa. Até o final de 1927, o hidroavião Atlantico faria 63 voos com mais de 200 passageiros.
20 de Dezembro, 2017