Eles erguem as mãos e não conseguem enxergar. Aliás, nem os pés. Nada. O corpo nu deve resistir, às vezes, por 30, 40, 50, 60 dias. Tentam tatear e encontrar as paredes ásperas ou o pequeno buraco no chão que serve de banheiro. Não há cama. O que recobre o chão de cinco metros quadrados é sujeira. Espaço muito quente durante o dia, que é tão escuro ou indecifrável quanto a noite úmida. A “cela de tampão”, usada para presos que teriam cometido indisciplina, é apenas uma das violações descritas pela Pastoral Carcerária em visitas regulares recentes de inspeção a cadeias públicas e presídios no país.
Eles são jovens (56% têm entre 18 a 29 anos). Eles são negros (67%). Eles deixaram os estudos (59% são analfabetos ou não completaram o ensino fundamental). São pobres e 28% deles se envolveram com tráfico de drogas. Nos espaços superlotados e, principalmente, desumanizados que sobrevivem, aprenderam novas regras. “Não para ressocializar. Dão uma outra roupa, cortam o cabelo, não escolhem a comida. Retiram a individualidade deles e um dia serão libertados. Mas quem serão eles?”, questiona o padre Valdir Silveira, da Pastoral Carcerária. Os massacres em dois presídios brasileiros na primeira semana de 2017 voltaram a expôr o caos do sistema penitenciário nacional. Privadas de liberdade e sob a tutela do estado, dezenas dos corpos foram encontrados decapitados.
No Brasil, segundo os últimos dados do Ministério da Justiça, cerca de 41% das pessoas privadas de liberdade são presas sem condenação. Em oito estados, havia uma quantidade maior de presos provisórios do que condenados: Sergipe, Maranhão, Bahia, Piauí, Pernambuco, Amazonas, Minas Gerais e Mato Grosso. "Estou acostumando a chamar as unidades prisionais brasileiras como a 'casa do mortos', nao só da morte fisica, mas da morte mental, psicológica, da morte de cidadania. Da possibilidade de voltar para a sociedade com o convivio que seja útil e que seja diferente", pondera o promotor de justiça Marcellus Ugiette.
O Amazonas é uma das seis unidades federativas em que os tribunais de justiça e o governo federal reconhecem que houve aumento da população carcerária em uma década (de 2005 a 2014) em 103%. No período, enquanto que a média de crescimento de presos no país foi de 66%, outros cinco estados viram mais que dobrar a quantidade de detentos em Tocantins (174%), Minas Gerais (163%), Alagoas (117%), Bahia (116%) e Espírito Santo (130%). A par das características particulares de cada um dos estados, a explosão dessa população encontra um sistema penitenciário fragilizado, com número crescente de presos provisórios que sequer foram julgados depois de 90 dias de detenção, gestões públicas e também privadas, e ainda conflitos permanentes entre facções. Vários mundos invisíveis cercados de celas, muros e fios elétricos que voltam à tona a cada matança.
Confira TV Brasil: Um raio x do sistema prisional
O presidente da OAB-AM Marco Aurélio Choy aponta que a co-gestão, ou a tercerização, não se mostrou uma saída eficaz para melhorar o sistema penitenciário. “Esses presos vivem em ambientes inóspitos. Desde 2014, temos feito discussões com o governo sobre a superlotação e as políticas de encarceramento. Aqui no Compaj (Complexo Anísio Jobim, onde 56 morreram no dia 1º), integrantes das facções não eram separados corretamente. Não é possível que os setores de inteligência não sabiam que esse massacre estava para ocorrer”, afirma. Em 2014, depois de inspecionar oito dos 23 estabelecimentos prisionais administrados por empresas privadas em funcionamento no Brasil, a Pastoral Carcerária lançou o relatório “Prisões privatizadas no Brasil em debate”, que recomenda que o processo de privatização seja imediatamente cancelado.
Marco Aurélio Choy destaca que o crescimento de violência na região tem relação com a falta de assistência ao cidadão. Em meio à pobreza, haveria, assim, cooptação pelo crime organizado. “Com a ausência e omissão do estado, esses grupos adentram pela Amazônia, o que forma um verdadeiro corredor para o crime”, afirma o presidente da OAB-AM. Logo após o massacre do dia 1º, a entidade entrou na justiça com uma ação pública contra o governo estadual exigindo medidas contra a crise do sistema. “A gente só sabe de reuniões ou conversas para construção de novos presídios, mas ninguém fala sobre proteção aos direitos humanos”, diz o advogado.
TV Brasil discutiu o tema:
Rádio Nacional também debateu a situação do sistema penitenciário:
“Nas prisões do norte do país, há vários fatores complicadores. Tudo é muito quente, úmido e fechado. As condições climáticas causam também um caos em relação à saúde dessas pessoas que estão sob tutela do estado”, explica o coordenador nacional da Pastoral Carcerária, Valdir Silveira, que atua há 27 anos na entidade. No Norte, a cela de tampão foi verificada no Amazonas e em Rondônia. Em Pernambuco, Sergipe e Piauí este tipo de cela é chamado de solitária ou "de castigo". O Conselho Nacional de Justiça também já havia denunciado a cela de tampão na Casa de Detenção de Vilhena, em Roraima. O padre Valdir Silveira lamenta que as denúncias são encaminhadas pelo poder público, mas a situação não se altera. “Por exemplo, no Amapá ainda encontramos celas de espancamento para castigos físicos. A gente já denunciou isso várias vezes”, lamenta.
Silveira entende que a situação na Região Norte é assustadora. “A tortura é uma prática comum nas carceragens. Encontramos em todos os lugares pessoas que sofreram muito”. Extorsões, estupros, afogamentos são denúncias comuns nas visitas de entidades ligadas à justiça e aos direitos humanos. O fato da tortura física e psicológica ser considerada comum nos presídios também é constatação do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil no Amazonas (OAB-AM), Marco Aurélio Choy. “Nessa política encarcerante, celas superlotadas misturam presos que cometeram diferentes crimes”, adverte o advgado.
Um agravante é que, em carceragens do interior foi constatado que homens e mulheres dividem prédios, com separação muito próxima e espaço comum inclusive para o banho de sol. A alimentação é escassa e, por isso, familiares e religiosos pedem, em cidades como Benjamim Constant, Atalaia do Norte e Tefé, alimentos para os presos. Para o padre Valdir, a falta de comida também é reclamação na Penitenciária Agrícola Monte Cristo, em Boa Vista, onde morreram 33 detentos na primeira semana de janeiro. Segundo o Padre Gianfranco Graziola, coordenador da Região Macro Norte da Pastoral Carcerária, a revolta dos presos pode ser explicada pelas condições de sobrevivência. Segundo relatório da Pastoral Carcerária, os próprios presos cuidam das celas e do corredor em que moram, incluindo pintura, fiação e lâmpadas.
Quem trabalha diariamente nos presídios concorda que a situação é de fato “degradante” e “assustadora”. De acordo com o presidente da Federação Nacional de Servidores Penitenciários (Fenaspen), Fernando Anunciação, 15 trabalhadores foram mortos dentro de presídios brasileiros em 2016. “Foram pelo menos 50 ataques contra trabalhadores. É uma das piores profissões no país. Infelizmente, foi preciso acontecer mais uma tragédia desse porte para a sociedade tomar conhecimento da real situação de caos no sistema”.
A federação fez denúncias com ofícios, relatórios e requerimentos junto ao Ministério da Justiça, ao Supremo Tribunal Federal, na Procuradoria-Geral da República e até na Organização das Nações Unidas (ONU) para denunciar a superlotação e a falta de estrutura nas centenas de unidades prisionais pelo Brasil. Outro problema estaria relacionado à falta de servidores. Hoje há 90 mil concursados, mas seriam necessários mais que o dobro desse número, de acordo com a federação. O treinamento para lidar com esse trabalho também seria longe do ideal. “Temos previstas 400 horas de aulas, mas sabemos que na maior parte dos estados não passam de 100”. Os profissionais concursados ganham um salário em média de R$ 3,5 mil, sendo que os terceirizados recebem ainda menos.
Um dos exemplos dessa vulnerabilidade ocorre em uma dos penitenciárias de maior superlotação no país, o Complexo do Curado (o antigo Aníbal Bruno), na cidade do Recife (PE). De acordo com o presidente do sindicato dos agentes em Pernambuco, João Carvalho, são 6.460 presos em três presídios que teriam capacidade para 1809 pessoas. “Temos 180 agentes que se revezam em plantões de 24 horas. Há apenas 15, mas deveriam ter 80 por turno. Assim, eles ficam confinados na sala de permanência à espera que nada aconteça”, explica. Servidores ainda participam de escoltas armadas de presos para outras cidades e de serviço em guaritas que cercam o complexo. “As armas passam porque hoje não temos condições de estarmos em todas as posições da penitenciária”, diz Carvalho.
Apesar dos massacres na primeira semana de 2017 terem chamado a atenção para presídios, são nas cadeias públicas que está espelhado o caos da política de encarceramento em massa. Segundo informações sobre penitenciárias de todo país disponibilizados pelo governo (relativas ao ano de 2014), proporcionalmente, das 10 unidades prisionais onde havia maior superlotação, seis eram cadeias (quatro no Ceará) onde ficam normalmente presos provisórios. Em relação aos presídios, entre as 10 maiores taxas de ocupação, seis eram no estado de Pernambuco.
O promotor de execuções penais de Pernambuco e membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Marcellus Ugiette, cita que na cadeia de Vitória de Santo Antão (com capacidade para 96 presos, e com mais de 600) e em Palmares (94 vagas e mais de 680 presos), as cadeias se transformaram em presídio sem ter estrutura para isso. “A gente fala de Caruaru e do Complexo do Curado por serem os mais midiáticos, mas do ponto de vista de superlotação carcerária, sem dúvidas, as unidades de Palmares e de Vitória têm um percentual muito maior com agravante de ter muito menor possibilidade para isso”.
"O Estado é cumplice das tragédias anunciadas", diz Marcellus Ugiette
O promotor entende que não houve responsabilidade social na política de encarceramento. “Em 2007, quando começou o Pacto pela Vida (programa de segurança estadual) tínhamos 15 mil presos. Hoje, nós temos 32 mil com quase o mesmo número de vagas”. Isso faz com que as unidades prisionais misturem pessoas que praticaram diferentes tipos de crimes e os exponha ao mundo do tráfico de drogas, tanto dentro das unidades como depois que são liberados, explica.
Ugiette exemplifica o problema com a história de um detento que estava preso por um crime menor e cumpria quatro anos de pena. Mas dentro da cadeia envolveu-se com o tráfico e foi condenado por esse crime que é muito mais grave. A cadeia é uma “escola” de crime para ele e outras pessoas. "Não melhoramos absolutamente nada neste período e continuamos com esse viés meramente punitivista sem possibilidade de reinserção social”, afirma. Pernambuco, ao lado do Amazonas são casos de destaque, mas demonstram o que ocorre no país inteiro. “O Brasil, nos últimos 15 anos, é o pais que mais colocou gente na cadeia. Essa filosofia de encarceramento contaminou absurdamente o país. Não é com a permanencia do preso por mais tempo na cadeia, que nos vamos resolver a questão da violencia e da criminalidade urbana", diz o promotor.
O Ministério da Justiça divulgou que, por conta da crise do sistema penitenciário, tem trocado informações com os estados a fim de discutir “medidas imediatas” a partir de relatórios “que estão sendo produzidos” com a implantação das medidas no Plano Nacional de Segurança, o que inclui a criação de 27 núcleos de inteligência e cronograma de execução de recursos liberados. Com plano, o governo espera reduzir a superlotação em 15% dos presídios em dois anos.
O governo do Amazonas aponta que o problema do sistema penitenciário não é isolado, mas de todo o país O estado pediu a disponibilização temporária de agentes federais de execução penal para garantir o restabelecimento da ordem nos presídios amazonenses, envio de equipamentos eletrônicos de rastreamento de celular para uma varredura nas unidades prisionais, além do “oferecimento de cursos de inteligência, o estabelecimento de protocolos e procedimentos de segurança, revistas e atuação, e um diagnóstico para a reestruturação do sistema prisional do Estado”, em nota.
Já o governo de Roraima solicitou apoio da Força Nacional após a morte de 33 pessoas na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo. A justiça em Roraima e no Amazonas ainda decidiu pela soltura de detentos que não ofereciam risco para a população, incluíndo presos por não pagarem pensão alimentícia.
O governo de Pernambuco informou que diversas ações para reduzir a superlotação no estado vêm sendo tomadas. "Nos últimos dois anos foram criadas 1374 novas vagas no sistema prisional adulto. A construção do Complexo de Araçoiaba está em andamento e abrigará 2.754 detentos, a obra desafogará o Complexo do Curado", afirma em nota.
Programa Caminhos da Reportagem relembra o massacre do Carandiru: